"Arte é a tradução do espírito por meio da matéria."
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012
Protesto tímido
Ainda a
pouco eu vinha para casa a pé. Feliz da minha vida, e faltavam dez minutos para
meia-noite. Perto da Praça General Osório, olhei para o lado e vi, junto a
parede da esquina, algo que me pareceu uma trouxa de roupa, um saco de lixo.
Alguns passos mais e pude ver que era um menino.
Escurinho,
de seus seis ou sete anos, não mais. Deitado de lado, braços dobrados como dois
gravetos, as mãos protegendo a cabeça. Tinha os gambitos também encolhidos e
enfiados dentro da camisa de meia esburacada, para se defender contra o frio da
noite. Estava dormindo, como podia estar morto. Outros, como eu, iam passando,
sem tomar conhecimento de sua existência. Não era um ser humano, era um bicho,
um saco de lixo mesmo, traste inútil, abandonado sobre a calçada. Um menor
abandonado.
Quem nunca
viu um menor abandonado? A cinco passos, na casa de suco de frutas, vários
casais de jovens tomavam suco de frutas, alguns mastigavam sanduíches. Além, na
esquina da praça, o carro da radiopatrulha estacionado, dois boinas-pretas
conversando do lado de fora. Ninguém tomava conhecimento da existência do
menino.
Segundo as estatísticas, como ele existem nada
menos que 25 milhões no Brasil, que se pode fazer? Qual seria a reação do
menino se eu o acordasse para lhe dar todo o dinheiro que trazia no bolso?
Resolveria o seu problema? O problema do menor abandonado? A injustiça social?
"A injustiça
não se resolve.
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido"
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido"
Então vim
para casa, os versos do poeta se repetindo na minha cabeça. Não sou poeta e
minha prosaica competência se limita a este retângulo impresso, onde me cabe
escrever amenidades sobre a vida de todo dia, para distrair o leitor. E
convenhamos que não é nada ameno como assunto um menor abandonado que me
pareceu a poucos passos um simples monte de lixo. Remover esse lixo? Pagar a
taxa da Comlurb? Ou seria melhor incinerar? Dizem os entendidos que o problema
é de ordem econômica, ou seja, mais de ordem técnica que de ordem moral. Precisamos
enriquecer o país, produzir, economizar divisas, combater a inflação,
pechinchar. O Brasil é feito por nós. Com isso, Todos os problemas se
resolverão, inclusive o do menor abandonado.
Vinte e
cinco Milhões de menores - um dado abstrato, que a imaginação não alcança. Um
menino sem pai nem mãe, sem o que comer nem onde dormir: isto é um menor
abandonado - hoje em dia designado eufemisticamente menino de rua. Para
entender, só mesmo imaginando meu filho largado no mundo aos seis, oito, dez
anos de idade, sem ter para onde ir nem para quem apelar. Imagino que ele venha
a ser um desses que se esgueiram como ratos em torno aos botequins e
lanchonetes e nos importunam cutucando-nos de leve - gesto que nos desperta mal
contida irritação - para nos pedir um trocado. Não temos disposição sequer para
olhá-lo e simplesmente o atendemos (ou não) para nos livrarmos depressa de sua
incômoda presença. Com o sentimento que sufocamos no coração, escreveríamos
toda a obra de Dickens. Mas estamos em pleno século 20, vivendo a era do
progresso para o Brasil, conquistando um futuro melhor para os nossos filhos.
Até lá, que o menor abandonado não chateie, isso é problema para o juizado de
menores. Mesmo porque são todos delinquentes, pivetes na escola do crime, cedo
terminarão na cadeia ou crivados de balas pelo Esquadrão da Morte.
Pode ser.
Mas a verdade é que hoje eu vi meu filho dormindo na rua, exposto ao frio da
noite, e além de nada ter feito por ele, ainda o confundi com um monte de lixo.
Fernando Sabino
Constância
Abriu
os olhos e não conseguiu entender o que estava havendo próximo ao seu rosto, no
qual tinha receio de buscar compreender o que produzia aquele barulho
ensurdecedor, o qual de forma crescente ia a cada nota deixando-a mais
preocupada e cansada. Abstendo-se de seus sentimentos, sentou-se na beirada do
móvel e desligou o despertador automático, tinha de arrumar-se para mais um dia
de trabalho, voltando assim, para a situação mais temível de sua vida, a
rotina.
Geisiani
Bontorin, 2011.
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
Assinar:
Postagens (Atom)